Burnout e Você
No Brasil, cerca de 30% da população economicamente ativa sofre de uma síndrome que provoca dores, perda de memória e desmaios. O trabalho é a principal fonte desse sofrimento. Mas empresas e profissionais ainda ignoram os riscos.
Quando o telefone tocou e o nome do seu chefe apareceu na tela, a vendedora V. de B. sentiu uma forte palpitação e falta de ar. A visão ficou turva, quadro agravado pela fome – já passava das 14h e ela não havia almoçado – e por ela estar dirigindo em plena Rodovia dos Bandeirantes após visitar um cliente insatisfeito. Precisou encostar o carro, abrir a janela e esperar o mal-estar passar – sob a pressão de não poder ignorar aquela ligação.
“Precisava atender ao telefone e às expectativas. Já havia sentido esse mal-estar antes, mas daquela vez achei que iria morrer, mesmo depois que eu parei o carro”, conta. Dores no corpo e lapsos de memória já eram comuns a essa altura. Passou a evitar desde reuniões até telefonemas e conversas com os colegas, apesar de ser uma vendedora com uma década de carreira.
“Perdia a concentração, o foco e tinha medo dos problemas diários da profissão, como se minha vida dependesse do resultado”, relata. Os sintomas começaram a se manifestar no ano passado e pioraram após uma mudança no ambiente organizacional: um novo chefe, com um estilo bem diferente de trabalho. “Ele era mais frio, indiferente. Assumiu a equipe e só nos chamou para conversar meses depois, mal sabia meu nome ou quem eu era. Às vezes demorava três meses para pagar reembolsos altos”.
Apesar de ser uma profissional de nível Pleno e com MBA, ela pediu demissão. Como precisava trabalhar para complementar a renda da família, conseguiu um emprego menos exigente e abriu mão de R$ 4 mil em relação ao que recebia antes. “Ao sair da sala do meu gestor, eu me senti tão bem que depois precisei me controlar”. Os sintomas não voltaram, as dores desapareceram. O médico receitou apenas um estabilizador de humor e recomendou descanso.
Assim como V. de B., três em cada 10 pessoas que fazem parte da população economicamente ativa do Brasil sofrem com a Síndrome de Burnout, segundo estimativa do International Stress Management Association no Brasil (ISMA – BR). A doença se caracteriza por um completo esgotamento mental que leva a sintomas como dores localizadas, perda de memória, alterações no sono e no humor, queda na capacidade de manter o foco e a concentração, baixa autoestima, irritabilidade e absenteísmo.
Christina Maslack, Ph.D em psicologia que foi a pioneira no estudo da Síndrome de Burnout nos anos 70, defende que o distúrbio se manifesta em três dimensões: exausão emocional, distanciamento das relações pessoais e diminuição do sentimento de realização pessoal. Segundo ela, trata-se de uma “resposta prolongada aos fatores de estresse crônicos emocionais e interpessoais no trabalho”. Portanto, é influenciada tanto pelo ambiente de trabalho quanto pela maneira como as pessoas reagem aos problemas relativos às atividades profissionais.
O professor da USP e psiquiatra Mário Louzã explica que alguns profissionais conseguem lidar com as adversidades oriundas do ambiente de trabalho sem desenvolver a Síndrome. “Depende de como a pessoa se envolve com o trabalho. Algumas conseguem administrar e o trabalho não desgastam tanto”, acredita. Porém não pense que se trata apenas de força de vontade.
Para Ana Maria Rossi, diretora da ISMA-BR, há duas correntes de pensamento no que se refere à Síndrome de Burnout. Uma apregoa que o profissional pode sair sozinho de uma situação se estresse exacerbado. “Outra corrente, na qual me enquadro, diz que uma pessoa não tem condições de lidar sozinha com o alto nível de estresse. Em um quadro de Burnout, o profissional não tem recursos internos para lidar com a situação”, comenta. Em outras palavras, o ideal é procurar um médico psiquiatra assim que os primeiros sintomas se manifestarem.
A Síndrome de Burnout é um problema que pode ter repercussões não apenas na vida de quem sofre, mas no faturamento da empresa e até no quadro econômico de uma nação. De acordo com a Previdência Social, os transtornos de ordem psíquica são a terceira causa de afastamentos do trabalho, atrás apenas de traumas físicos e doenças osteomusculares, como a Lesão por Esforço Repetitivo (LER). Por ano, os gastos com pagamentos de benefícios superam os R$ 200 milhões, sobrecarregando a já problemática seguridade social. Isso sem considerar os custos gerados pela queda de produtividade.
“Os transtornos mentais causam um impacto econômico para o sistema previdenciário maior que o seu impacto numérico”, lembra o médico do trabalho e mestre em saúde pública João Silvestre. “As pessoas que se afastam por doença mental são profissionais mais qualificados, com maior renda, do que aqueles com outros problemas, como os traumas ou acidentes”.
Com isso, o Burnout deixa de ser um problema psicológico pessoal dos trabalhadores e se espalha às raias da sociedade e da economia. E aí o problema é de todo mundo. Para o médico do trabalho João Silvestre, que desenvolveu um estudo para investigar o afastamento do trabalho por doenças mentais, são necessárias ações envolvendo Estado, empresas e pessoas para mitigar os efeitos do Burnout.
Origens
A síndrome de Burnout recebeu esse nome na década de 1970 pelo médico germano-americano Herbert Freudenberger. A psicóloga Christina Maslach – conhecida também pela participação no polêmico experimento de aprisionamento de Stanford – trabalhou o tema em sua tese de doutoramento. “As consequências do Burnout são potencialmente muito sérias para trabalhadores, clientes e a maior parte das instituições com as quais eles interagem”, escreveu no The Maslach Burnout Inventory, documento de referência na pesquisa sobre o Burnout.
Ao contrário do que se costuma pensar, não se trata de uma condição que veio junto com a modernidade. Christophe Dejours, reconhecido especialista em medicina do trabalho e psicopatologia, traça as origens do sofrimento no trabalho moderno às revoluções industriais. Para ele, essa época é marcada pela luta dos trabalhadores pela sobrevivência, dado que as condições de trabalho eram altamente insalubres. Após a Primeira Guerra Mundial, seguida da fragilização do modelo Taylorista, a preocupação passa a ser a qualidade de vida. No entanto, em seus estudos, Dejours aponta que o aspecto psicológico é o que suporta os maiores danos decorrentes do trabalho.
“A organização do trabalho exerce sobre o homem uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Em certas condições emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos e uma organização do trabalho que os ignora”, escreveu Dejours em A loucura do trabalho (Cortez Editora, 2015, 224 p.) [http://amzn.to/1VqRAj0]. Para ele, as relações de trabalho tiram do trabalhador sua própria subjetividade, e aí consiste a gênese do sofrimento.
De uma maneira mais clara, esse quadro pode ser exemplificado por frases clássicas como “você não é pago para dar opinião”, “pense menos e trabalhe mais” ou “você é muito fraca, isso é ser incompetente”. Essa última foi ouvida pela funcionária pública H. R. “Era um trabalho de rotina extremamente desgastante. Eu sentia que a cada dia ficava mais cansada, mais triste, desanimada. Ignorei esses sentimentos e continuei com uma rotina bem puxada”, conta.
Em seguida, a situação piorou e ela percebeu que não existia outra saída além do tratamento médico. “Numa manhã entrei em colapso: tive uma crise de ansiedade que me impedia de fazer qualquer coisa. Só sentia medo. Fui a vários médicos depois disso até chegar a um psiquiatra especializado. Ele me falou sobre a síndrome de Burnout e iniciei a terapia”, conta. Ela precisou ser temporariamente afastada e loteada em outra secretaria. Um ano depois, continua em tratamento para prevenir outras crises.
“O ponto fundamental é uma estrutura psicossocial na qual a interação do sujeito e a situação de trabalho sobrecarrega física e emocionalmente o trabalhador. Ao longo do tempo ele entra em desgaste”, afirma Silvestre. Para Dejours, tanto a estrutura emocional do trabalhador quanto as imposições do modelo organizacional podem influenciar o sofrimento, em maior ou menor graus.
Em um quadro político e econômico tenso, com 11,4 milhões de pessoas desempregadas no país, investimentos parados e equipes sobrecarregadas, desenha-se um quadro social anômico – propício ao caos e à ausência de regras claras –, o que favorece o surgimento de mais casos de Burnout.
Crise econômica
“Nesse atual momento em que estamos vivenciando, o cenário econômico brasileiro é muito preocupante, nunca sabemos o que pode acontecer”, avalia o gerente C. C. Há pouco tempo ele foi promovido à gerência de um centro automotivo, mas a comemoração cede lugar ao cansaço. “Há dias em que parece que minha cabeça vai explodir. Não sobra ânimo nem para ir à padaria no final do expediente”, relata.
Não houve aumento na carga horária nem situações de abuso psicológico. Por um lado, há a cobrança constante por resultados e o peso da responsabilidade de “honrar os compromissos da empresa”. Por outro, há frustração pela baixa movimentação do mercado e incapacidade de reverter a queda nas vendas. “Todos com quem conversamos dizem a mesma coisa, que o movimento da loja caiu, isso está para todos os lados”, comenta. Ele já foi diagnosticado com gastrite nervosa e suspeita estar à beira do esgotamento.
Para Silvestre, não é exagero relacionar o Burnout à crise política e econômica, uma vez que problemas sociais têm impacto direto sobre a saúde e bem-estar individual. Sequer é necessário uma crise aprofundada, basta uma reorganização no modelo de negócios de uma empresa ou uma operação de fusão ou aquisição para alguns trabalhadores somatizarem o medo e a insegurança.
“Estudos nórdicos demonstram que situações de reestruturação produtiva – com ou sem crise – aumentam a insegurança no trabalho e a sobrecarga, que são fatores importantes para as doenças relacionadas ao estresse – cardiovascular, osteomuscular e mental –, com aumento de absenteísmo e presenteísmo”, defende. Silvestre utiliza o modelo teórico de Whitehead e Dalgreen, que coloca o indivíduo como o centro de uma série de fatores determinantes da sua saúde.
Tratamento
Nas grandes empresas, um departamento voltado para a segurança e saúde do trabalhador é fundamental para prevenir ou combater situações de desgaste psicológico. H. R., já citada, conta que buscou ajuda na Secretaria de Saúde do município onde trabalha e o órgão ratificou a necessidade de mudança do local de trabalho para evitar uma situação pior. “Foi um processo árduo e burocrático, mas valeu a pena”, diz.
Para o psiquiatra Mário Louzã, ao afastamento temporário deve proceder-se a mudança nas condições de trabalho – caso contrário, o trabalhador será confrontado com a mesma situação e reagirá da mesma maneira. “Se as circunstâncias não mudarem, a pessoa logo volta ao mesmo estado. O Burnout em geral não requer afastamento definitivo ou aposentadoria por invalidez, mas muitas vezes requer um rearranjo do trabalho ou um outro emprego com uma demanda menor”, explica.
Em alguns casos, o tratamento pode incluir intervenção medicamentosa, mas na maioria será receitado apenas afastamento e descanso. A presidente do ISMA, Ana Maria, elenca seis medidas que os próprios profissionais podem adotar para evitar o Burnout. Em qualquer caso, se a doença já estiver deflagrada, é importante que se procure um psiquiatra especializado para indicar o melhor tratamento.
1. Atividade física. Pessoas que praticam alguma atividade física de moderada a intensa quatro dias por semana colocam o corpo e a mente em forma. “Dessa maneira, o profissional não internaliza angústias e consegue gerenciar o estresse”, conta Ana Maria.
2. Alimentação. Na correria do cotidiano, outro item que recebe pouca atenção é a alimentação. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,9% da população brasileira está acima do peso. Além da qualidade, os horários também não são respeitados. “É necessário cuidar da alimentação, tanto da qualidade quanto da periodicidade”, afirma. O ideal é comer a cada três horas, dando preferência a alimentos naturais e integrais.
3. Conversar. Algumas pessoas preferem não compartilhar assuntos da vida pessoal com outras. Mas se o lado psicológico estiver sobrecarregado, um desabafo pode fazer bem. “Ter um par de orelhas próximo, um amigo ou colega confiável, pode ajudar nessas situações, mesmo que a pessoa não seja de fazer confidências”, diz a psiquiatra.
4. Relaxamento. Alguns preferem assistir séries, outros gostam de ler um bom livro, e outros apostam na Ioga. Não importa qual, mas é recomendado que a pessoa procure e pratique alguma técnica de relaxamento que funcione para ela.
5. Comunidade. Seja um grupo de apoio, amigos, familiares, igreja ou clube, uma comunidade onde a pessoa possa compartilhar experiências e ouvir o que outras pessoas têm a dizer auxiliam o gerenciamento do estresse. “Esses grupos vão ajudar bastante, são pessoas que têm alguma coisa em comum”, afirma.
6. Dormir. Há quem se vanglorie por trabalhar madrugada adentro ao invés de dormir. Esse hábito pode levar ao esgotamento em pouco tempo. “Algumas pessoas ficam completamente restauradas com cinco horas de sono, outras precisam de nove. O ideal é que cada um encontre seu tempo ideal de sono e mantenha o padrão”, conclui a psiquiatra.