“O DNA social pode mudar nosso DNA individual”, diz especialista em epigenética

Em entrevista à GALILEU, o cientista francês Joël de Rosnay fala sobre como comportamentos individuais e coletivos influenciam nosso DNA                                    

Epigenética considera que fatores ambientais também influenciam em nosso DNA

A descoberta do DNA é relativamente recente: ele foi identificado nos anos 1940 e representou uma revolução no conhecimento da genética. Graças a ele, a ciência compreendeu os princípios fundamentais da transmissão de características hereditárias e a possibilidade de mutações com modificação das “letras” do código genético. Em 2003, o sequenciamento completo do DNA do genoma humano permitiu decodificar e escrever os códigos da vida, desmistificando-os ainda mais.

Durante muito tempo, a maior parte dos cientistas estava convencida de que os seres vivos eram um produto de seus genes. Tudo seria determinado por um programa genético herdado de ancestrais, e mutações ou variações levariam um longo período para aparecerem, seguindo o princípio de seleção darwiniana.

Havia, porém, uma questão: 98% do espaço de armazenamento da informação genética que constitui o genoma é ocupado por DNA não codificante — ou seja, não contém os genes que carregam instruções para fazer as proteínas necessárias ao funcionamento do corpo. Isso significa que a maior parte do material genético, cuja principal função é codificar, não desempenha este trabalho. Sem saber o motivo, cientistas decidiram chamá-lo de “DNA lixo”.

Mais recentemente, descobriu-se que parte desse material tem o papel de gerenciar a interação entre os genes. E essa interação depende, em grande parte, dos nossos comportamentos, emoções e estilo de vida. O “DNA lixo” está longe de ser inútil: ele forma o epigenoma, um conjunto de genes que determinam as modificações de uma célula causadas por outras moléculas que não só proteínas e enzimas. A descoberta representou o fim da crença de que “tudo é genética” e abriu campo para demonstrar que não existe fronteira entre gene e ambiente.

Joël de Rosnay é um cientista francês com PhD em Biologia. Foi pesquisador e professor do MIT e diretor do Instituto Pasteur, na França

No recém-lançado A Sinfonia da Vida (Editora Planeta), o cientista francês Joël de Rosnay, autor de um estudo clássico sobre a origem da vida, escreve sobre os efeitos da descoberta da epigenética. Além de explicar sobre como podemos usá-la a nosso favor para mudar nossas próprias vidas, Rosnay estabelece uma relação entre a epigenética e a epimemética — a modificação dos genes do DNA social, os chamados “memes”, mostrando como a sociedade também pode influenciar nossos DNAs. Entenda na entrevista a seguir.

DNA - microscopico

(Foto: Darwin Laganzon/Pixabay)

Como o fim da ideia de que tudo é genética mudou a forma como a ciência entende quem nós somos e a maneira como lidamos com nossas vidas?

Uma das grandes descobertas destes últimos anos é que nem tudo é genético, outros fatores entram em jogo – entre elas a modificação da expressão dos genes pelo comportamento, a base da epigenética. A grande mudança é que nós podemos nos tornar responsáveis por nossa saúde e nosso envelhecimento. Podemos fazer alguma coisa por nós mesmos, e isso se aplica a todo mundo, desde que se compreenda por que fazemos, o que fazemos e como fazemos.

O que é o “DNA lixo” e qual o seu papel na epigenética?

O que chamamos de DNA lixo é um grande número de RNAs, molécula de regulação que intervém permanentemente nos mecanismos da epigenética. A compreensão do papel regulador dos microRNAs, capazes de reconhecer o RNA mensageiro e de inibir ou expelir um “gene particular”, é uma grande descoberta.

É possível prever os efeitos da epigenética?

Os efeitos da epigenética são conhecidos pela inibição ou expressão de um dado gene. Um dos grandes objetivos da indústria farmacêutica é agir seletivamente sobre o epigenoma, para inibir ou exprimir os genes. Ainda não é possível fazer previsões exatas, mas há elementos que ajudam a prever com uma forte probabilidade os efeitos do comportamento de uma pessoa na expressão de certos genes. Sem falar da nutrição e da meditação, que fazem com que certos genes se expressem mais que os outros (e isso foi demonstrado cientificamente).

Quanto tempo demora para aparecer os efeitos da epigenética e quanto eles duram?

Os efeitos da epigenética são imediatos, ou pelo menos a muito curto termo. Eles persistem durante bastante tempo se a prática comportamental continuar.

Você fala sobre “gerenciar nosso próprio corpo com epigenética” e como um “manual de epigenética” poderia ajudar as pessoas a alcançarem seus objetivos, como prevenir doenças. Quais seriam as regras fundamentais desse manual?

As regras fundamentais para gerenciar a sua própria epigenética, se tal manual pudesse existir, seriam: praticar exercício físico todos os dias de sua vida, manejar o estresse, ter uma nutrição equilibrada, uma relação social e familiar harmoniosa e buscar sistematicamente o prazer em tudo o que você faz.

Pode explicar a “teoria do meme social” e como ela pode ser relacionada à epigenética para se tornar a “epimemética”?

De um modo análogo ao que os genes são para a genética, os memes propostos pelo biólogo inglês Richard Dawkins são os genes sociais transmitidos pela cultura e mídia moderna digital, particularmente os tuítes. O célebre #MeToo é um meme. Do mesmo modo que a epigenética estuda a modificação da expressão dos genes do comportamento, a epimemética estuda a modificação dos genes sociais, sua transmissão pelas mídias e seu armazenamento em um DNA social. Isso é o que chamamos de epimemética em relação à epigenética.

Quais são os diferentes tipos de DNA social?

Por exemplo, os cargos das empresas são uma forma de DNA social. Outros exemplos: a constituição de um país e a carta de valores de uma empresa são impressões do DNA social do país/empresa.

O DNA social pode mudar nosso DNA individual e vice-versa?

Sim, o DNA social pode mudar nosso DNA individual. Por exemplo, assim que uma lei é promulgada em um país, ela vai mudar nosso comportamento e, portanto, nosso DNA pessoal. Do mesmo modo, nosso DNA individual, pela transmissão de certos memes que o constituem, pode mudar o DNA social. Isto se traduz no feedback social representado pelas redes sociais, pelo correio dos leitores, pelo voto ou pelos referendos. Essas participações individuais tornadas coletivas vão conduzir a políticas ou aos empresários a modificarem o DNA social.

Se não podemos parar o uso de memes para espalhar e manipular ideias em uma grande escala, como podemos nos tornar menos suscetíveis a eles, de modo que tenham menor efeito na epimemética?

Atualmente os memes são utilizados pelos políticos, empresários, formadores de opinião e por vocês, jornalistas, para manipular as ideias e influenciar as pessoas em uma escala de massa. Às vezes, [os memes] chegam ao ponto de produzirem as fake news e, mais recentemente, as deep fakes, que são a criação de discursos políticos em vídeo com o físico real das pessoas, uma construção sintética que usa inteligência artificial. Isto vai constituir um perigo importante no futuro.

O único meio de evitar o impacto das deep fakes é a coordenação cidadã com redes para detectá-las, discuti-las, avaliar a importância e reduzir sua influência. Certas plataformas como o Facebook começaram a detectá-las e a diminuir o impacto sobre seus associados.

Pode dar exemplos de armas de “disrupção” em massa e como identificá-las?

As armas de disrupção em massa são os blogs, os sites da internet e as redes sociais. O efeito delas de amplificação é tal que a gente pode considerá-las como armas de disrupção em massa. O único modo de identificá-las é acreditar em uma inteligência colaborativa e em uma forma de “blockchain de intermediários de confiança” capazes de identificá-las e de reduzirem seu impacto.

No livro, você fala sobre o poder das redes sociais, visto que graças a elas as pessoas agora podem se expressar e interagir diretamente com políticos e líderes econômicos. Entretanto, em muitos países uma grande parcela ainda não tem acesso às redes sociais, como é o caso do Brasil. Há risco de a internet e as redes sociais criarem uma falsa impressão de democracia?

De fato, quando as redes sociais surgiram, considerei que elas seriam uma chance para o que chamamos de “democracia participativa”. Depois, ajustei minha posição levando em conta que as redes sociais se transformaram em um veículo de desinformação, às vezes de ódio e discriminação. No entanto, elas permanecem uma chance de expressão cidadã mais eficaz que os votos ou as sondagens de opinião e mesmo os referendos.

Em alguns países, infelizmente, a população não tem acesso às redes digitais ou sociais, e muito frequentemente, nos países totalitários a internet é controlada por monopólios – sejam comerciais, como os das gigantes da internet (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, Alibaba), sejam políticos, como na Turquia ou na China, onde a internet é regulamentada pelas autoridades. As mídias sociais controladas podem dar uma uma falsa impressão de liberdade e democracia.

E mesmo quando elas não são controladas, podem apresentar o risco de representarem somente uma parte da população. Atualmente, em um país como a França, numerosos serviços governamentais são acessíveis somente por internet, negligenciando o fato de que as pessoas idosas ou com conexões ruins locais não são capazes de utilizá-la. O analfabetismo digital existe mais do que creem os governos.

Como você acha que o mundo vai ser daqui a 50 anos, considerando as mudanças epimeméticas e epigenéticas acontecendo no momento?

Penso que a palavra-chave que ilustra o futuro é a simbiose. A simbiose entre os humanos e o ecossistema natural, entre os seres humanos e o ecossistema digital, entre os seres humanos e as novas tecnologias criadas pela indústria. A simbiose é um ganha-ganha, todos ganham, tanto os produtos naturais quanto os artificiais, o homem e o meio ambiente.

Daqui a 50 anos, penso que se a simbiose vencer, a humanidade também poderá vencer. O grande desafio é estabelecer uma simbiose respeitosa dos valores humanos com o meio ambiente. Essa é a questão à qual nós, cientistas, filósofos e prospectivistas [grupo no qual Rosnay se insere], nos apegamos para mudar o mundo.

Revista Galileu